domingo, 3 de outubro de 2010

A China Han e o Ocidente

A Dinâmica Comercial

Como pudemos observar na parte anterior, o desenvolvimento da fronteira chinesa e das regiões periféricas estava intimamente vinculado às práticas imperialistas da dinastia Han. Grande parte desta estrutura estava ligada à questão do controle comercial da rota da seda, das vias marítimas e da expansão territorial. Por conseguinte, podemos afirmar com bastante segurança que, no caso específico da China, a interferência do Estado na economia era bastante forte, fosse no papel de administrador, fiscal ou mesmo de investidor.

O império chinês era um grande patrocinador de empresas comerciais, fossem de caráter estatal (quando financiava expedições militares, estabelecia colônias comerciais, postos de guarda, etc) ou privado (protegendo as corporações de comerciantes instalados na fronteira, construindo estradas, articulando a distribuição de produtos, regulando taxas, fazendo empréstimos, etc). Não havia, teoricamente, uma concorrência entre esses dois níveis de capital (privado e público); na verdade o Estado buscava abrir as fronteiras para as iniciativas particulares e garantia sua porcentagem através de impostos cobrados dos comerciantes e produtores rurais que fossem se instalar nos novos territórios. O fomento de inúmeras colônias no extremo norte do Império, no sul e na Indochina era uma prática complementar que visava, igualmente, ocupar novas áreas de importância comercial, bem como desafogar certas províncias com excesso de população e apertadas por dificuldades econômicas (Gernet, 1979: 118-134).

O que este processo gerou foi um fortalecimento do poder das corporações manufatureiras e comerciais ao longo dos séculos 1 – 2 D.C, sobre as quais pesavam grande parte das contribuições para financiar o exército e a burocracia imperial nas áreas periféricas (Gernet, p.135-141). Na verdade, ao longo dos séculos 3 A.C - 3 D.C, a imbricação entre o comércio internacional, o comércio local e a ação do Estado tornou-se praticamente inseparável.

Apesar de ser uma civilização essencialmente agrícola, que dependia em grande parte das culturas rurais e de um metódico planejamento anual de plantio, irrigação, colheita, etc. os chineses perceberam que era bastante vantajoso estimular a exportação de suas manufaturas, geradora de rendas significativas para alguns grupos sociais, o que, conseqüentemente, aliviava também a pressão fiscal que era constantemente exercida sobre o campesinato. O comércio local, responsável pelo trânsito das mercadorias regionais, era regulado e inspecionado por esta burocracia imperial e pelo exército, que visavam organizar a distribuição e o fluxo das mercadorias, buscando tanto beneficiar as regiões produtoras quanto os negociantes (Gernet, p. 135-141 e Kirby, 1954: 66-87). Nas empresas de grande escala (normalmente em áreas externas) é que o Estado intervinha diretamente, empreendendo as expedições militares que conquistavam novos territórios, abrindo-as para a vinda de comerciantes e colonos chineses.

Um exemplo desta política ficou patente numa série de campanhas realizadas no sul da China no século 2 A.C.. Um alto funcionário Han, por ocasião de visita ao território de Guanzhong (Cantão), havia sido convidado para um jantar onde foram servidas de sobremesa frutas que não eram típicas da região. Aguçado pela curiosidade, descobriu que havia rotas comerciais marítimas provenientes da Índia e do Pacífico que aportavam nos territórios de Guandong, Guanxi e na região de Tonquim (Indochina), o que imediatamente informou ao imperador e aos seus superiores quando retomou seu posto em Chang An. O resultado foi que, em 111 A.C, foram enviadas tropas que incorporaram estas terras aos limites imperiais, tornando-as novas províncias (Morton, p. 77-78). Os portos dessas regiões eram extremamente ativos, sendo o tráfico neles tão intenso como nos mercados do norte.


Representação de Militares Chineses do Período Han.

Para manter as guarnições militares nestes locais, impostos novos sobre a circulação de mercadorias foram criados. E o exército, encarregado de fazer a coleta das taxas nos pontos de trânsito, acabava, assim, se integrando à burocracia; não raramente, alguns generais se transformavam em administradores provinciais ou regionais, como no caso clássico de Ban Chao. Dentro da China vemos que as instituições militares atuavam, de fato, como agentes estatais na regulação das atividades econômicas (Bielenstein, 1980: 12-20 e Gernet, p.138-141). A vida dessas forças, encarregadas de guardar as fronteiras e fazer a recolha de impostos, foi muito bem descrita e trabalhada através de um achado arqueológico valioso feito na região de Dunhuang, a oeste do Gansu (região do extremo norte da China): uma coleção completa de cartas, relatórios, pedidos, livros alfandegários, etc, em número aproximado de dez mil unidades, compostos por rústicas (mas duráveis) ripas de madeira que continham informações diversas sobre o trabalho dos postos fronteiriços (Loewe, M. The records of Han dynasty, 1967).

Esta documentação é, em geral, sucinta e objetiva. No entanto, além de contar o cotidiano das tropas aquarteladas, ela nos dá informações precisas sobre o trânsito comercial e militar nas fronteiras, a quantidade de impostos e mercadorias recolhidos, novos tipos de produtos, etc. Enfim, toda uma gama de dados que deixava o Estado com um razoável conhecimento - e controle - sobre o mercado interno e externo (Gernet, p.122-124 e Morton, p.77-79). Por isso mesmo, não é de estranhar que as listas de produtos estrangeiros contidas no Hou Han Shu e nos documentos posteriores sejam tão precisas, já que muitas das informações provinham deste trabalho burocrático, além, claro, dos dados coligidos pelas missões diplomáticas.

Entre muitos produtos vendidos no império celeste, aqueles de origem estrangeira parecem ser os que chineses mais apreciavam. Há que se destacar uma lista contida no Wei Lu que trata exclusivamente dos gêneros de origem romana, apresentando, com detalhes, o que apetecia ao império Han. No documento, tais gêneros aparecem como “as mercadorias que são encontradas em Da Qin”, contidos num trecho onde se descreve a visão chinesa sobre este reino. Logo a frente, porém, somos informados de que as mesmas são aquelas que “os comerciantes deste reino vêm trazer até nós”. Vejamo-la por completo, agora:

“Ouro, prata, cobre, ferro e chumbo. Tartarugas, cavalos brancos (...), carapaças de tartaruga, ursos negros (...), conchas, chifres, marfim, gemas de “rei dos peixes” (?), (...) pérolas reais brancas, âmbar, coral, dez cores de vidro opaco (...), Pedra cristal (?), dez tipos de jade (...), cinco cores de tapete Qu shu, cinco cores de tapetes Ta deng, (...), brocados de ouro, tecidos cosidos com ouro, damascos de várias cores, (...) e 12 tipos de perfumes e fragrâncias de origem vegetal”.

Devemos notar que os chineses citam apenas o que para eles provém de Da Qin. Outros produtos como madeira, peças de arte, condimentos, etc, eram sabidamente de origem indiana ou das ilhas do pacífico, coisa com o qual os autores não se enganaram; já os escravos são citados em outra passagem. Curiosa, porém, foi a tendência dos autores posteriores a Sima Qian e Ban Gu de acreditarem que a Síria era apenas uma outra denominação do Império Romano, afirmando; “Da Qin, também chamado Li Kan.” (Esse engano ocorre no Wei Lu, no Jin shu e no Song Chu. No Liang shu não há menção do nome Li Kan; no Shi ji e no Han shu os nomes estão corretos. No Hou Han shu os Da Qin também são chamados de Li Kan e ainda, de Hai Xi Guo (“país a oeste do mar”, mas não sabemos a qual ele se referia: poderia ser o mar Cáspio, o mar Morto ou mesmo o oceano Índico), mas Fan Ye parecia saber que a Síria se tratava de uma parte do Império, e não que era a mesma coisa). É provável que tal engano ocorresse por alguns motivos simples: a Síria era província romana, e muitos mercadores partiam de lá com suas caravanas ou ainda, negociavam seus produtos na fronteira com a Pártia; além disso, é provável que os próprios mercadores informassem serem as importações de origens variadas, além de pertencerem ao “Império Romano”. Este erro, porém não ocorreu no Shi Ji ou no Han Shu, o que mostra que os historiadores pós - Han não podiam contar com uma estrutura de informação totalmente confiável.

Por conseguinte, podemos ver que o Estado, então, tinha realmente um certo controle sobre a economia e sobre o comércio, o que se manifesta neste conjunto de documentos produzidos em caráter oficial. Precisamos ver, portanto, a relação deste tráfego comercial com a estrutura econômica chinesa neste período.

Alguns estudos mais abrangentes foram feitos sobre a questão organizacional da economia na China Antiga (Ver os trabalhos de CHIN, C. Economic history of China. Washington: Belligham, 1974; HSU, C. Han agriculture: the formation of the early chinese agrarian economy. Seattle: Washington University press, 1980; KIRBY, E. Introduction to the economic history of China. London: George Allen, 1954; YU, Y. Trade and expansion in Han China. Los Angles: Berkeley, 1967 e PAN KU & SWANN, L. Food and money in ancient China. New York: Hippocremerbook, 1972). A idéia que atravessa todos estes trabalhos é que, realmente, a dinastia Han estava interessada em diversificar, ao máximo, suas fontes de renda. A produção agrícola estava sempre sujeita às intempéries da natureza, e períodos contínuos de má colheita e escassez de alimentos colocavam o poder do imperador em jogo (Loewe, p.95-103). A expansão territorial e a difusão do comércio parecem ter surgido aí como soluções para desafogar estas tensões sociais, criando um trânsito de capitais e produtos (SJ, 129; HS, 90; HHS, 47; YTL, 20 e 25).

Não podemos com isso considerar, no entanto, que grande parte das mercadorias de origem estrangeira tivessem livre circulação social. No caso específico da China, temos que classifica-las em três grupos distintos.

O primeiro deles, de circulação ampla, englobaria os metais e pedras preciosas, utilizados no pagamento de despesas administrativas, no câmbio, na troca por mercadorias e na confecção de moedas e objetos de valor. Dada sua constituição e a forma como entravam no sistema econômico chinês (moedas e metais eram utilizados em pagamentos dos mais diversos tipos, provavelmente através de um sistema de equivalência por peso. Ver Anquetil, 80-81). Este tipo de produto tinha uma circulação maior dentro das áreas imperiais, basicamente entre todas as classes sociais (bem como em todos os lugares do sistema mundial).

O segundo grupo, de circulação semi-restrita, seria constituído pelas mercadorias que teriam uma certa difusão em mercados locais, de acesso mais popular, mas essencialmente dentro dos limites imperiais e nas periferias. Provavelmente estes produtos tinham origem nas regiões próximas à periferia Han (sudeste asiático, Indonésia, Malásia, Ásia central), e daí o seu preço menos custoso. Os chineses incluíram em suas listas cereais, condimentos, madeiras, sal, tecidos mais rudimentares, ferro, bronze e fibras vegetais. Parece-nos impressionante que as dificuldades chinesas em produzir alimentos tenham chegado ao nível deles terem que importar, ocasionalmente, grãos e gêneros básicos, mas por outro lado isso dá um certo sentido ao estímulo constante a diversificação de atividades econômicas e comerciais por parte do Estado. É provável que as atividades comerciais tenham sido empregadas na obtenção de gêneros alimentícios, através de requisições organizadas pela burocracia imperial. Por outro lado, não sabemos em que escala esses produtos participavam do montante das importações, já que os meios e transporte da época não permitiam longas travessias destes gêneros sem que parte estragasse ou ficasse inútil. Em se tratando das especiarias, algumas possuíam preços restritivos, o que também circunscreveria sua aquisição a parte reduzida da sociedade. Assim sendo, é muito difícil precisar se houve alguma política por parte do Estado chinês em importar e estocar alimentos em momentos de estiagem (sabemos que tais políticas existiam, mas elas lidavam basicamente com a produção interna), e por este motivo, só podemos averiguar de forma restrita sua difusão.

Podemos afirmar, porém, que o preço das mercadorias de circulação semi-restrita seriam mais acessíveis, dado que muitas delas já eram manufaturadas pelos chineses e por seus territórios súditos, o que coloca esta categoria como complementar ou alternativa a própria produção nativa. Portanto, o valor sistêmico dos mesmos não deveria ser muito significativo, tendo em vista que eram distribuídos de forma razoável dentro do império chinês e não eram trocados por materiais de grande valor.


Gladiador greco-romano em um vaso de vidro
(século II D.C.), Begram, Afeganistão. Begram era
uma das cidades do Império Kushana no século I D.C.

O terceiro grupo, no entanto, é aquele pelo qual guardamos um especial interesse. As mercadorias de difusão restrita, geralmente de origem longínqua e custo dispendioso, são aquelas que seriam empregadas pelas elites como demonstração de prestígio perante suas sociedade de origem. Não podemos inferir o quanto seria lucrativo ou oneroso trazer este tipo de produto para a China, mas sabemos que um mercado específico existia para absorvê-lo. Era o das classes abastadas, cosmopolitas, que tinham uma imagem para preservar em seu próprio interior e junto ao resto da população. Os produtos escolhidos foram aqueles que, como veremos, adquiriram um maior valor sistêmico dentro do sistema mundial, sendo empregados pelas elites de todas as culturas envolvidas nas rotas comerciais: a seda, sobre controle imperial direto na China; pedras preciosas, jóias e objetos artísticos trabalhados, tecidos nobres, escravos, perfumes, condimentos raros, animais exóticos, ferro cromado e bronze de alta qualidade (em geral chinês também), vidro...Enfim, uma série de itens que, do ponto de vista da cultura material, fariam qualquer nobre, em qualquer uma das sociedades que compunham o mundo civilizado, ser reconhecido como tal, estivesse em casa ou longe dela.

A forma específica de obter estas mercadorias e seu custo alto é que geravam sua importância sistêmica entre as elites do sistema mundial, bem como estimulavam suas práticas de ostentação. Economicamente, parecia ser vantajoso tanto para os chineses quanto para os romanos exportar suas mercadorias, mas o custo das importações torna-se uma tarefa difícil de estimar. O fato é que, no caso chinês, esse equilíbrio alternava períodos de solidez e de fragilidade extrema, intimamente vinculados à capacidade dos imperadores e de sua burocracia em gerenciarem os períodos de escassez e de dificuldades produtivas. Nos últimos períodos dos Han, no século III D.C, era notória a incapacidade dos governantes em lidar com as crises que afetavam o campo e a economia, gerando uma série de revoltas que terminaram por desmembrar a dinastia (Loewe, p.286 – 307). No entanto, a vinda de produtos de consumo conspícuo continuou a ocorrer mesmo após a queda dos Han, como atesta o Liang Shu, 54:

“Durante o período final da Dinastia Han, só houve uma embaixada direta para Zhong guo (China). No entanto, seus mercadores visitaram freqüentemente os portos de Funam (Sião), Jinan (Anam) e Chiao Chin (Cochinchina) (...) Durante o quinto ano do reinado de Huangwu, rei de Sunquan (226 D.C), um mercador do reino de Da Qin, chamado de Qin Lun, veio até Chiao Chin (Cochinchina) (...) Ele se apresentou diretamente ao rei, trazendo anões coloridos, seres que eram raramente vistos por ali. (...) Um oficial de nome Liu Xien foi designado para acompanhá-lo até sua terra natal; Qin Lun conseguiu voltar a salvo para sua pátria, mas Liu Xien pereceu na travessia”.

A análise dos aspectos econômicos do sistema mundial do ponto de vista chinês demonstra, portanto, que a vinculação entre a circulação econômica e o governo central foi um resultado natural do processo de fusão entre os interesses de Estado, os investimentos das corporações comerciais particulares, a produção agrícola e as manufaturas nativas. Em certa medida houve um atrelamento das atividades produtivas ao circuito comercial, não só através da geração de excedentes como também da produção específica para venda ou distribuição (por parte do governo). Assim, a geração de riquezas e a manutenção da ordem institucional e política possuíam uma íntima ligação, como fica patente principalmente no segundo caso (a política de distribuição de mercadorias entre as elites periféricas e nas semi-periferias para manutenção de alianças e acordos dos mais diversos tipos).

No período dos séculos 2 – 1 A.C a dinastia Han implementou uma política chamada Heqin – “paz e amizade” – que tinha como mister pacificar as tribos Xiong Nu com presentes e dinheiro, além de conquistar aliados entre os países fronteiriços na Ásia central (Gernet, p.120). Inicialmente a política teve sucesso, mas, no caso específico dos “bárbaros” povos do Norte, a medida em que os líderes tribais descobriram que cada revolta aumentava as ofertas materiais, decidiram então se rebelar quase que anualmente, absorvendo recursos cada vez mais significativos do Império. Uma estimativa baseada em dados da época indica que em 51 A.C foram distribuídos, por exemplo, oito mil rolos de seda; este número subiu para trinta mil rolos no século 1 D.C, e no mesmo período, das dez bilhões de moedas de cobre em circulação, um terço foi utilizado na política de apaziguamento (Morton, p.83 e Gernet, p.131). Como cita Morton: “não surpreende, portanto, que os ex-nômades explorados dentro das fronteiras do império estivessem freqüentemente em pé de guerra” (Ibidem).

No caso dos Xiong Nu, os imperadores Han posteriores julgaram que comprá-los com presentes era uma política ineficiente, e resolveram que deveriam utilizar tais recursos para empreender a aniquilação do inimigo. Por isso mesmo, todas as tribos que não se submeteram de bom grado à nova ordem foram desbaratadas numa série de campanhas militares, tanto aquelas que viviam em conflito direto contra o Império quanto aquelas que estavam, como diziam os documentos, sob “sua proteção”. Os países vizinhos continuaram, porém, a receber seus presentes, como prova de amizade e confiança – mas ainda assim, segundo GERNET, p.131 a prática de distribuição de dinheiro aos Xiong Nu continuou, no século 1 D.C. Em 91 D.C, durante o Protetorado de Ban Zhao, foram distribuídas Cem milhões e novecentas mil moedas de cobre (qian), e no mesmo ano, os reinos que protegiam os oásis da rota receberam setenta e quatro milhões e oitocentas mil moedas de cobre. Gernet ainda confirma que a receita do Império constava de dez bilhões de moedas, do qual um terço ou um quarto eram utilizados na política de presenteamento.

Por isso mesmo, observamos que a distribuição de mercadorias tinha também um amplo caráter ideológico, fosse fomentando a amizade das elites estrangeiras, quanto fazendo “propaganda” dos produtos chineses no exterior. Aparentemente Wu Di já tinha isso em mente quando iniciou suas primeiras doações (Gernet, 130). Cabia aos comerciantes acompanharem esta iniciativa e aproveitarem a oportunidade de lucrar, motivo pelo qual muitos deles se dirigiram para o norte, ao longo da rota da seda, ou ainda para os portos das províncias de Guanzhong e Guanxi.

Vemos assim que, no caso chinês, não há dúvidas de que a política econômica, em seus diversos níveis, estava articulada à razão da existência do império; e por conseqüência, durante a época Han, sua dinâmica interna adquiriu uma estreita ligação com os movimentos políticos e sociais externos. Em última instância, o desenvolvimento deste fator teria impulsionado os chineses ao contato com as outras civilizações, através de um projeto bem dirigido que visava suprir as carências internas realizando a manutenção e a preservação de seu modo de vida, mas que, ao mesmo tempo, abriu as portas do império às influências estrangeiras que foram empregadas pela elite no fortalecimento de sua própria posição perante a sociedade. Foi, portanto, um processo complexo, em que o fortalecimento do império e da cultura chinesa dependeu, em grande parte, do relacionamento econômico e político que os mesmos desenvolveram com seus vizinhos e com os povos mais distantes. E se por um lado o objetivo era o enriquecimento geral da sociedade, fortalecendo suas bases de existência, o que se viu foi a ratificação das desigualdades através de uma prática de ostentação que foi intensamente influenciada por referenciais externos. A intervenção do Estado contribuiu em muito, porém, na dinamização das práticas econômicas (Kirby, p.66-87). Os desdobramentos culturais, no entanto, é que realmente operaram modificações profundas na estrutura da sociedade, como veremos a seguir.

Dinâmica política e cultural

Na análise das manifestações do sistema mundial nos aspectos culturais chineses devemos ter um extremo cuidado em separar os elementos que adquiriram um caráter sistêmico cosmopolita daqueles que seriam apenas originários da China ou, ainda, que ficariam circunscritos à sua civilização. Tal cuidado tem por objetivo tornar possível que analisemos quais valores sociais, materiais e ideológicos chineses contribuíram e/ou sofreram influência da cultura comum que foi compartilhada pelos centros hegemônicos e por suas periferias, gerando assim o sistema mundial. Partindo dessa premissa, poderemos discutir uma série de práticas da sociedade chinesa que dizem respeito ao nosso trabalho, e evitaremos o engano de acreditar que a formulação do sistema mundial poderia ter uma origem unilateral, problema enfrentado por alguns autores que se dedicaram ao estudo dessas culturas e de suas relações.

Entre a China e seus vizinhos periféricos, estabeleceu-se uma clara relação de dominação e conflito, pautada numa hierarquia cultural e política cujo parâmetro de avaliação, do lado chinês, era a sua própria cultura. Após o movimento de expansão iniciado no século 2 A.C, os chineses estabeleceram uma gradação para os níveis de relacionamento que possuíam com as outras civilizações com as quais estavam em contato. A denominação de “bárbaro” era aplicada usualmente àqueles que não dominavam qualquer um dos elementos da cultura chinesa, tal como a língua, os costumes e rituais, ou ainda, um sistema de vida sedentário, baseado na agricultura, centrado em cidades (segundo Jopert, 1979 p. 92. o Confucionismo foi responsável pela separação definitiva entre os que são chineses e os “outros” através do parâmetro ritual. Ser chinês equivalia a “seguir os rituais” confucionistas, independentemente das leis ou mesmo da religião. Esta noção foi, no entanto, flexibilizada pelos Han. Sobre este aspecto ver também o trabalho de CHENG, A. Etudes sur le confucionisme Han. Paris: Institute de Haute Etudes Chinoises, 1985). Assim, o sistema chinês de classificação civilizacional tinha por base sua própria ideologia, mas não excluía a possibilidade de outras nações possuírem uma cultura que os diferisse dos “bárbaros”. Tal é o caso dos partos, dos romanos e mesmo dos reinos greco-bactrianos, que nunca foram considerados “inferiores” na escala cultural dos historiadores Han, pois, mesmo não praticando a língua chinesa, eles produziam seus próprios rituais, leis e construíam cidades (logo nunca se constituíram em periferia do império chinês, embora os kushans tenham aceitado a presença chinesa em seu território no século 2 D.C). Esta noção deriva justamente do contato que os chineses tinham com as culturas nômades, que consideravam desprovidas de inteligência, saber e organização por nunca se estabelecerem em um lugar definido.

Por isso mesmo os chineses não se importavam de tratar como “reinos” aquelas civilizações estabelecidas ao longo dos oásis da rota da seda, que costumeiramente recebiam os presentes enviados pela corte Han, já que estas possuíam alguns dos “itens” que compunham uma cultura na mentalidade chinesa (Gernet, 130-32).

Mesmo assim, os chineses tratavam de delimitar muito bem o seu papel hierárquico no sistema de relações que desenvolveram com estes vizinhos (bárbaros ou não). Recepções suntuosas eram feitas na corte para a visita dos príncipes destes povos, demonstração inequívoca do poder imperial. Era costume, aliás, juntar todos os enviados diplomáticos e representantes estrangeiros numa única recepção, para mostrar a força do imperador e a extensão de sua influência (ibidem).

Uma política de absorção dos bárbaros também foi implementada pelos Han, transformando-os em aliados seguros pela sua sinização constante. Isso significava transformá-los em chineses, ou quase, através de sua fixação nas terras da fronteira, da prática da agricultura, do ensino da língua e da cultura chinesas e pelo seu emprego no exército (Gernet, p.134; CH’u, p.31-33; e Loewe, M. Everyday life in early imperial China. London: Batsford, 1968 p. 75-88.). Isso não significa, porém, que a vida destes povos fosse tranqüila: mesmo depois de sinizadas, algumas tribos eram exploradas e ameaçadas constantemente, o que gerava uma série de revoltas contra a administração imperial (ibidem Loewe, p.134). Por isso mesmo, o nível de envolvimento dos Xiong Nu com os Han era variável: algumas tribos converteram-se definitivamente ao modo de vida chinês, mas outras não ab-rogaram de seu modo de vida independente, ou “bárbaro”.

Esta análise das tribos do Norte é válida também, em certa medida, para a relação que o Império desenvolveu com as áreas do sudeste asiático, Coréia e Japão, lugares onde a cultura chinesa era entendida como indício de civilidade e saber.


Arte Mural do Período Han.

Mas o padrão de análise cultural chinês sofreu uma grande flexibilização, de fato, a partir das relações desenvolvidas com as civilizações da Ásia central e com o Ocidente. Como vimos, elas eram definidas como “nações” por serem possuidoras de elementos considerados como civilizacionais pelos chineses. Num longo trecho acerca da viagem de Zhang Qian, realizada no capítulo 123 do Shi Ji, Sima Qian deixa bem entendida a consideração que era feita pelos Han sobre estes povos. Iniciando pelos greco-indianos de Dayuan, ele os descreve como:

“Um povo que vive em suas terras, cultivando os campos e produzindo arroz e trigo, além de vinho. Possui também uma raça muito especial de cavalos (...). O povo vive em cidades fortificadas de vários tamanhos, e o povo conta alguns milhares de habitantes” (SJ, 123).

O mesmo é dito acerca de Daxia, outro dos reinos da Ásia central, cujo “Povo é muito pobre, cultiva os campos, mas possui cidades e cavalos”.(ibidem)

No entanto, quando se tratava de outros povos como o de Kangju, os Wusun ou os Tiazhi (SJ, 123), que praticavam em certa medida o nomadismo, o autor não usava terminologia como “reino”, “país”, etc. Ele utilizava a palavra “terra de...”, ou “povo de...”. O que quer dizer que ele compreendia haver um espaço no qual estas culturas estavam inseridas, mas era o seu modo de vida que os tornava mais ou menos civilizadas.

Estas concepções foram aplicadas com grande respeito, porém, aos reinos dos kushans, dos partos e principalmente dos romanos. No Hou Han Shu, quando surge a primeira descrição dos romanos, vemos que eles eram considerados os mais civilizados dentre os civilizados não-chineses, já que, além de terem todas as instituições necessárias a constituição de uma cultura, também produziam as mercadorias estrangeiras mais apreciadas pelo Império chinês, listadas por nós anteriormente. No trecho da documentação em que aparece a viagem para Ocidente de Gan Yin, o embaixador oficial de Ban Chao encarregado exclusivamente de entrar em contato com os romanos, temos a primeira manifestação clara desta concepção.

Não sabemos se Gan era o único emissário, ou se fazia parte de um grupo que foi enviado a várias localidades. A procedência da fonte e o relato de sua viagem são corretos, porém, já que Ban Chao costumava escrever para o irmão historiador Ban Gu, e boa parte dessa correspondência foi empregada na confecção do Han Shu e do Hou Han Shu. Tendo coletado o maior número de informações possíveis, Gan Yin retornou ao comando de Ban Chao e fez o relato que a documentação nos legou (HHS, 86 e 88).

O fato do general Ban Chao tê-lo enviado diretamente para entrar em contanto com os romanos já deixava claro que os chineses conheciam os Da Qin havia algum tempo. E a maneira como Gan Yin repassou as informações que conseguiu sobre os ocidentais e suas formas de vida reflete o espírito no qual os chineses compreendiam a existência de Roma como uma grande civilização, enquadrada nos seus critérios culturais. Vejamos a frase inicial do documento, que é perfeita para compreender esta idéia;

“O povo de Da Qin tem historiadores e tradutores de línguas estrangeiras, tais como os Han. Vivem em cidades, suas muralhas são de pedras, usam cabelo curto, vestem roupas bordadas e deslocam-se em pequenos carros, tais como os nossos. Os governantes são escolhidos e desempenham suas funções durante algum tempo, ao final do qual são substituídos, ou são mantidos no cargo caso sua administração seja exemplar. São de grande estatura (...), e vestem-se diferentemente dos chineses. Sua terra produz ouro, prata, pedras preciosas, âmbar, vidro, ovos gigantes e animais raros”. (ibidem)

O trecho não para por aí: a descrição de Fan Ye nos informa que:

“O povo de Da Qin é honesto. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre barato. O governo é sempre forte, com silos cheios e tesouro grande. Os Da Qin nos enviaram sua primeira embaixada (166 D.C), e desde então seus comerciantes são sempre vistos em Jinan (Tonquim)”. (Ibidem)

Por fim, o documento nos informa, num trecho específico;

“A capital dos Da Qin possui cinco palácios, cujos pilares são feitos de vidro. (...) Quando o rei chega a seu palácio, ele examina os documentos oficias, e conta com um grupo de trinta e seis auxiliares para isso”. (ibidem)

Esta descrição é incrível, não somente pela precisão de detalhes, mas pela admiração que os chineses nutriam por esta civilização. Somam-se a estas passagens referências sobre as distâncias entre Chang An e Luoyang até os países em questão com um senso cartográfico notável: no Shi Ji, no Han Shu e no Hou Han Shu, bem como nos documentos posteriores, aparecem sempre menções as distâncias entre as capitais chinesas e o país descrito. Os autores chineses buscaram agir com certa precisão, algumas vezes com sucesso, medindo as distâncias (por terra) até a Índia, Ásia central, Partia e Roma, mas como foi feita esta mensuração, não o sabemos. É provável que tenha sido feita uma contagem de dias de viagem, ou ainda, uma recolha de informações. No entanto, no caso das distâncias marítimas, os chineses não nos informam sobre quase nada, provavelmente por não terem um conhecimento exato sobre o assunto.

É, pois, impressionante que até pouco tempo atrás alguns autores ainda acreditassem que Roma e China não tivessem contato uma com a outra.

Vamos, porém, analisar o documento por partes e com cuidado. Devemos ver, em primeiro lugar, que ele foi redigido no século 5 D.C mediante consulta a escritos do século 1 e 2 D.C Quanto ao relato de Gan Yin, não temos razões para acreditar que tenha sofrido muitas alterações. Mas é provável que, quando Fan Ye citou as visitas constantes dos ocidentais aos portos do sul da China, estivesse se referindo a um tempo mais próximo do seu, e ao conjunto de mercadores que afirmavam vir de Da Qin, o que engloba um bom número de povos diferentes; além disso, devia estar assimilando o movimento comercial de sua época ao do século 2 D.C, já que os chineses tinham uma certa tendência, desde Sima Qian, a compreender a História como repetição de certos ciclos, o que deu ensejo, portanto, que este autor projetasse sobre o passado algumas de suas considerações. Mas não temos motivos para duvidar da plausibilidade de ter ele documentos que reproduzissem, de forma fiel, os registros oficiais de movimento da época Han, bem como versões do Shi Ji e do Han Shu. A precisão de certas informações, bem como alguns enganos, nos dão a idéia de que esta fonte foi construída com o conhecimento acumulado desde o século 1 A.C. É o caso do rei que “governa durante algum tempo, até ser substituído”, uma confusão patente com o regime de consulado romano (Morton, p.81). O tabelamento de preços mais famoso de Roma também só foi promovido no século 4 D.C por Diocleciano, embora algumas tentativas de controle de preços e contenção da exploração comercial tenham sido experimentadas desde os tempos de Augusto, o que nos faz supor que esta seria uma projeção chinesa sobre alguma política de austeridade romana. Já a descrição da capital é de certa maneira bastante intrigante.

Os chineses nunca usaram qualquer nome para designar Roma, mas parecem ter sabido que essa era uma cidade grande e populosa. Os cinco palácios podem referir-se aos prédios públicos (Senado, Fórum, templos, etc), cujas “colunas de vidro” nada mais seriam do que as duradouras colunas de mármore e pedra dos prédios imperiais. O engano era compreensível, pois os chineses não conheciam os métodos de fabricação do vidro, e o confundiam ocasionalmente com alguns tipos de pedras, o que, somado aos efeitos da imaginação, criavam então uma Roma ideal fabulosa e fantástica. De qualquer forma, eles sabiam que os Da Qin só possuíam uma capital, e que esta era tão grande quanto Chang An, dado que deve ter sido colhido entre os mercadores e/ou embaixadores ocidentais.

Esta coleção de informações demonstra que os chineses buscaram conhecer os romanos, admiravam sua cultura e tinham por eles apreço. Embora a maior parte de suas relações tenha se desenvolvido no campo comercial, culturalmente observamos que o padrão chinês sobre o que era “ser civilizado” acabou por confundir-se com uma idéia maior de civilização cujos valores sistêmicos definidores seriam a vida sedentária, o planejamento urbano e a produção intelectual. Estas noções se reproduziriam também em Roma, na Pártia e na Kushana, que analisaremos adiante.

O que inferimos é que a constituição deste grupo de valores que determinavam a condição hierárquica de um centro ou uma periferia não derivou somente da importância econômica das áreas envolvidas, mas também, da capacidade que tivesse um determinado povo de produzir cultura e corresponder aos referenciais que foram estabelecidos, em comum acordo, pelos centros hegemônicos ao longo do século I D.C Isso nos formula, então, uma condição fundamental de análise: não era somente a cultura do centro hegemônico que estabelecia sua ascendência sobre as regiões periféricas, mas também sua capacidade de interação com outros centros, regulando o fluxo material e cultural externa e internamente.

Tal condição se reproduz no segundo conjunto de práticas que correspondem à estrutura do sistema mundial: a manutenção das desigualdades sociais e políticas entre povos e classes através de uma diferenciação material representada pelo acúmulo de terras e capital e pela prática da ostentação. Tal como os romanos, os chineses (acompanhados pelos partos e kushans) adotaram os produtos estrangeiros (além daqueles que estavam sob controle estatal) como vinculadores de uma imagem de prestígio, poder e ascendência sobre a sociedade. Como vimos, os Han já praticavam a distribuição de presentes para angariar aliados. Em geral, os produtos concedidos eram de alto valor comercial, e o Estado fazia questão de incluir nestas dádivas mercadorias de outras partes do mundo. Os comerciantes também tinham, nessas ocasiões, a oportunidade de realizar negócios privados, vendendo o mesmo tipo de produto para as elites interessadas em adquiri-los, o que fortalecia sua imagem junto às classes dirigentes.

Sabemos que personalidades locais eram cooptadas para as causas chinesas através destes presentes, e muitos recebiam também cargos na burocracia imperial, o que lhes concedia uma parcela de poder significativa (Ch’u, p. 75-97; 174-181 e 210-232 e Loewe, p.38-75). Responsáveis pela disseminação da política chinesa, essas elites locais se viam estimuladas, portanto, a difundir perante suas sociedades os padrões ideológicos e culturais chineses do qual compartilhavam, e junto com eles todo um sistema hierárquico no qual estavam situadas no topo, fossem como nobres, funcionários burocráticos, etc (Uma série de elementos distintivos, como selos imperiais representado os mais diversos níveis hierárquicos, placas de ouro, fitas ou roupas de seda, etc. eram empregados pela elite como símbolos de caráter oficial. Assim, o próprio poder central encarregava-se se estabelecer uma hierarquia, que era complementada pela prática da ostentação de riquezas).

Como vimos anteriormente, no caso dos enviados de Shan (Armênia), selos de ouro e fitas de seda eram distribuídos para apontar as bênçãos do imperador. O caso dos escravos também é muito significativo: os chineses apreciavam utilizar estrangeiros para as funções de acompanhantes e serviçais, pois apesar de seu alto preço, estes representavam uma demonstração importante de prestígio e força econômica. Como vemos no Liang Shu (LS, 54), a presença de anões negros (“coloridos”) causava furor nas classes abastadas. Na verdade, embora a China Han não fosse um império escravagista, cuja economia dependesse dessa força de trabalho, ainda assim esta dinastia foi a que conheceu os maiores contingentes de escravos na história chinesa (Ch’u, p. 131-156 e Wilbur, 1943).

Como atestam as listas de produtos chineses contidos nos documentos a partir do Hou Han Shu, os escravos eram uma mercadoria valiosa, junto com animais exóticos e pedras desconhecidas. Algumas referências sobre os escravos na documentação chinesa são encontradas em capítulos do Shi Ji em: 129 (escravos particulares); 85 (escravos de um ministro); 100 (escravos oficiais); 79 (escravos como presente); 118 (escravos do governo); no Han Shu; 37 (escravos como oficiais); 43 (escravos presenteados); 44 (escravos do governo); 48 (mercado de escravos); 72 (número de escravos); e no Hou Han Shu; 51 (escravos vindos das regiões do oeste).

Esta prática de ostentação era fomentada pela elite, como vimos, mediante o uso de produtos de circulação restrita dentro do império chinês. E fora da China, os produtos chineses é que cumpriam este papel de artigos de luxo, sendo que alguns deles absorveram um papel muito específico nas relações de troca e uso. Vejamos o caso da seda, por exemplo. Admirada dentro e fora da China, o segredo de sua fabricação era guardado a sete chaves pelo Estado e pelas corporações manufatureiras. Certas colorações de seda só podiam ser empregadas pelo imperador, bem como certos tipos de jade; a concessão de seu uso era a delegação de um poder muito especial. A seda, portanto, era uma das mercadorias de maior valor sistêmico que existia em circulação no sistema mundial, já que era reconhecida como um símbolo de poder em quase todos os lugares. E, curiosamente, ela era negociada por seu peso, assim como vários outros produtos, através de uma balança utilizada tanto pelos romanos quanto pelos chineses, como atesta Mazahery (Mazahery, p.833-850, num artigo bastante interessante, demonstra como uma balança comercial antiga, denominada “romana” no Ocidente, teve uma provável origem chinesa).

Vemos então que o comércio, tanto o particular quanto aquele sob controle estatal, era vinculador e fomentador fundamental dessa mentalidade de sinização e ostentação. Para fazer parte do sistema maior, era necessário aprender a cultura que punha o homem da época em contato com o mundo, e, no caso do Extremo Oriente, era preciso aprender a ser chinês. Mas para atingir nesta estrutura um grau importante, era necessário alcançar um desenvolvimento econômico forte, que permitisse vincular a capacidade produtiva de um povo ou lugar ao circuito econômico dinâmico que o Estado chinês gerava. E, para demonstrar o nível de interação com este sistema, era fundamental adquirir os produtos que vinham de tão longe, e que bem representavam o prestígio de uma elite.

Por isso mesmo, não é estranho que os chineses tenham desenvolvido a intenção de entrar em contato com os romanos, mais até, talvez, do que com os partos ou kushans. Nem podemos estranhar a suposta presença de ocidentais que chegariam, anualmente, aos portos do sul e aos mercados do norte para negociar e realizar embaixadas. Os Da Qin pareciam representar uma nação ideal, poderosa, com grandes valores morais e rituais, uma civilização desenvolvida e, principalmente, produtora de todos aqueles maravilhosos e desejados produtos que compunham as listas de mercadorias exóticas dos Han (HS, 88 e CS, 97). Os chineses não somente projetaram nos romanos sua visão ideológica de mundo, mas compartilharam com eles uma idéia de ordenação mundial importante, estabelecida em valores sistêmicos específicos que determinavam não só os elementos fundamentais do que seria uma “civilização” como, também, a forma de separá-la, graduá-la e mantê-la sob controle, demonstradas perfeitamente pela idéia da ostentação e pelo controle imperial sobre o comércio, a política, etc.

Existiram também, obviamente, diferenças profundas entre a cultura chinesa e a dos outros centros hegemônicos. Mas os chineses, a princípio, parecem ter compreendido conscientemente o papel dessas relações internacionais em sua própria existência, deixando-nos um legado documental valioso sobre as suas relações com o Ocidente neste período.


<--1ª Parte


.:: André Bueno
www.transoxiana.org

Um comentário:

Serpentarius disse...

Um dos melhores textos que li em 2014. Obrigado por oportuniza-lo a nós.